Matteo Catanese PI8Hk 3ZcCU Unsplash

As sete principais críticas à tipologia “cidade inteligente”

A tipologia de cidade inteligente é alvo de críticas na academia e em comunidades onde iniciativas e práticas baseadas em seu conceito foram realizadas, as quais podem ser provocadas por diferentes razões. Abaixo elencamos as sete principais críticas levantadas em uma revisão de literatura que abarcou mais de cem dos mais relevantes artigos científicos presentes em bases de dados internacionais.

1) Visão acrítica e ausência de avaliações profundas e objetivas

Dentre as principais razões para crítica às chamadas cidades inteligentes está o fato que atores urbanos envolvidos neste processo tendem a ser entusiastas e receptivos à mudanças tecnológicas que promovam certa sofisticação e espetacularização, tornando-os mais suscetíveis à crença de que a cidade inteligente é uma promessa autorrealizável ou o único caminho para a transformação urbana positiva.

Autores que corroboram esta crítica destacam que em muitos projetos de cidade inteligente é possível observar certa “fetichização da tecnologia”, como se este recurso sempre significasse progresso, as soluções tecnológicas para as cidades fossem soluções inequívocas e a sua adoção massiva pudesse resolver todos os problemas urbanos. Acreditar que a instrumentação tecnológica transforma automaticamente uma cidade em “inteligente” atrapalha a compreensão desta tipologia.

Estes pontos destacam que, frequentemente, se constata uma postura predominantemente favorável e um tanto acrítica sobre a cidade inteligente, dando menos atenção aos resultados negativos que aos resultados positivos evidenciados. Tompson (2017), por exemplo, aponta que os estudos de caso existentes apresentam uma tendência a olhar favoravelmente para aqueles que criam projetos urbanos, como consultorias, governos e bancos de desenvolvimento. Com isso, ocorre uma distorção da realidade que impede avaliações mais objetivas e neutras sobre seus resultados.

2) Ausência de diálogo e debate público sobre pontos sensíveis

Outra crítica que desponta neste cenário, discutida por González (2016), diz respeito a como os possíveis erros e problemas da cidade inteligente – aspectos que podem influenciar profundamente a vida e a agenda urbana – são minimizados ou ausentes do debate público. Questões como violação de privacidade e segurança, uso excessivo de tecnologia, inclusão social fragmentada, diminuição da liberdade de expressão e da democracia e proteção das cidades e suas operações contra possíveis ataques digitais, não costumam ser discutidas com o grande público.

3) Predomínio do setor privado e de interesses do mercado

O impulso para a difusão e penetração de tecnologias inteligentes é predominantemente originado no setor privado. Com isso, o controle corporativo desta tipologia ajuda não apenas a promover esta visão acrítica da tipologia, mas também a disseminar uma receita estandardizada que nivela as diferenças de abordagem e objetivos de política das cidades inteligentes..

O número restrito de multinacionais privadas atuando na definição de trajetórias para as políticas urbanas em todo o mundo cria o risco de uma “hegemonia” (CARAGLIU; DEL BO, 2019). Alguns autores ainda destacam que pode haver uma influência neoliberal sobre o conceito, pois ao privilegiar interesses de elites empresariais sobre os problemas urbanos urgentes, esta tipologia se torna uma ferramenta ideológica.

4) Tentativa de padronizar o que é desigual por natureza

O uso de exemplos “canônicos” e ajustes únicos, aliado à ausência de estudos de caso aprofundados em iniciativas específicas e comparadas, que permitam conhecer os contrastes desta tipologia em diferentes locais e contextos, atrapalha a criação de agendas efetivas para as cidades inteligentes. A superficialidade no uso do conceito, seu embasamento em benchmarkings reducionistas e modelos que simplificam demais a complexidade da dinâmica urbana, limitam o potencial e os resultados de projetos de cidade inteligente

5) Uso da tipologia apenas como marketing

Alguns autores argumentam que, em meio à grande difusão do conceito, o termo cidade inteligente passou a ser utilizado, em alguns casos, apenas como um rótulo ou marca para promover a cidade, ocultar aspectos específicos ou, ainda, para que ideias tradicionais sejam “reembaladas” com o nome do conceito de cidade inteligente, promovendo iniciativas que não apresentam real contribuição à sua forma efetiva.

Nem sempre a sua utilização deste modelo ocorre da maneira adequada ou de forma consistente pelas cidades, por isso, embora muitas se considerem cidades inteligentes, há dúvida se elas realmente o são. Tang et al. (2019) também afirmam que em alguns casos o termo é utilizado mais como um “chavão” do que como um programa coerente e articulado, em função da ausência de uma visão estratégica sobre seu desenvolvimento. Esse tratamento desgasta e esvazia os valores ligados aos fundamentos do conceito.

6) Consequências negativas não planejadas

Embora grande parte dos discursos de cidades inteligentes pressuponha a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e o seu “empoderamento”, na realidade, em algumas visões e projetos, o cidadão sequer possui voz ativa e, em outras, ele opera apenas como um sensor urbano ou usuário passivo dos serviços que são oferecidos pela cidade. Pesquisadores, formuladores de políticas e ativistas pedem abordagens que considerem mais a equidade e a inclusão para garantir que as pessoas sejam priorizadas nas mudanças propostas.

Críticos apontam que, em função de interesses corporativos e globais que sobrepujam indivíduos e grupos específicos nas cidades inteligentes, desigualdades aumentaram, assimetrias de poder foram agravadas, cidadãos desfavorecidos foram ainda mais marginalizados e lacunas de legitimação democrática foram ampliadas. As necessidades dos cidadãos “não digitais” e das cidades que não pretendem se digitalizar são ignoradas. Além disso, ainda que governos enfatizem que estão preocupados com seus residentes e comunidades, o imperativo econômico de algumas cidades parece ser atrair capital, particularmente de conhecimento.

7) Baixo envolvimento das partes interessadas

O fraco envolvimento colaborativo com várias partes interessadas prejudica a agenda de cidade inteligente. Embora, aparentemente, todas as abordagens de smart city pretendam ter impacto positivo na vida cotidiana de seus cidadãos, as políticas “inteligentes” geralmente se concentram em iniciativas de cima para baixo, a abordagem top-down. O conceito de Smart City se popularizou em discursos políticos que, mesmo levando em consideração os cidadãos, costumam se traduzir em políticas elaboradas e implementadas por instituições. Os cidadãos são frequentemente considerados usuários, testadores ou consumidores, em vez de produtores e fontes de criatividade e inovação.

 

*Esse texto foi adaptado de DEPINÉ, Ágatha; TEIXEIRA, Clarissa Stefani. Eficiência urbana em cidades inteligentes e sustentáveis: conceitos e fundamentos. São Paulo: Perse, 2021. O livro pode ser acessado na íntegra neste link.

The following two tabs change content below.
É advogada urbanista, pesquisadora, mestre e doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina com estágio doutoral na Sapienza Università di Roma. Atua na intersecção entre cidades, inovação e sustentabilidade. agathadepine@gmail.com

Latest posts by Ágatha Depiné (see allVIA - Knowledge Station