As três ondas das cidades inteligentes – uma evolução histórica
Alguns dos autores mais conhecidos e citados sobre cidades inteligentes (NAM; PARDO, 2011), defendem a importância da compreensão da origem desse termo para a análise de seu desenvolvimento e transformação ao longo do tempo. Uma das razões pelas quais, ainda hoje, não existe consenso sobre uma definição clara de cidade inteligente é que ideias e tecnologias estão sempre evoluindo, tornando a cidade inteligente um conceito parcialmente flexível e adaptável à finalidade, ao ponto de vista e até mesmo à narrativa empregada.
A cidade inteligente é “um ecossistema de inovação urbana impulsionado pelo uso de tecnologias da informação e comunicação, as TICs, coordenadas de forma equilibrada junto à infraestrutura tradicional da cidade para aumentar a eficiência de seu sistema, dos serviços e da gestão urbana e, consequentemente, oferecer melhor qualidade de vida aos cidadãos” (DEPINÉ; TEIXEIRA, p. 24, 2021). Entretanto, apesar desse conceito sintetizar muitos dos elementos presentes na literatura, não há consenso entre os autores sobre todos os tópicos que ele abarca.
Com base em pesquisas e publicações que apresentam elementos históricos desse conceito urbano, ou mais especificamente de sua trajetória, identificamos pontos em comum que delineiam o desenvolvimento histórico da cidade inteligente em três principais ondas: (a) a primeira como um movimento desarticulado de mudança na visão de cidades; (b) a segunda, direcionada à adoção de produtos e serviços de tecnologia e; (c) a terceira, e atual, mais voltada a aspectos sociais e a qualidade de vida dos cidadãos. Abaixo essas ideias são melhor exploradas.
A primeira onda das cidades inteligentes
Ao analisar a trajetória do conceito de cidade inteligente, é possível conectar seu surgimento, ao menos parcialmente, à convergência de vários imaginários urbanos, os quais muitas vezes empregaram retóricas utópicas. Para Varghese (2016), uma das origens da cidade inteligente, também chamada de cidade futurista pelo autor, é atribuída ao imaginário provocado pela ficção científica. O autor afirma que as inúmeras invenções e descobertas desde a Revolução Industrial, como o surgimento do computador eletrônico – um subproduto da Segunda Guerra Mundial, estimularam o imaginário voltado à concepção de uma era “mágica” de desenvolvimento e transformação com a tecnologia.
Autores como Ishida e Isbister (2000) afirmam que foi na década de 1970 que novas tecnologias e estruturas imateriais passaram a fazer parte do espaço físico da cidade. Como consequência, na década de 1980 houve o crescimento significativo do uso de tecnologias de informação e comunicação na forma de sistemas de informação e até mesmo de integração de transporte, a exemplo de Sydney, na Austrália, onde sistemas tecnológicos foram utilizados para gerenciar a sinalização de tráfego e, posteriormente, a localização de ônibus por GPS (TOMPSON, 2017).
Logan e Molotch (1987) defendem que o conceito de cidade inteligente passou a ser definido mais consistentemente na década de 1980, quando diferentes ideias de cidades foram discutidas e houve maior foco em velocidade e flexibilidade na gestão urbana para que elas fossem adaptadas aos mercados globais. Outros autores defendem que o conceito e a discussão sobre cidades inteligentes podem estar ancorados na visão neoliberal da cidade e no desenvolvimento do empreendedorismo urbano deste mesmo período, os quais se relacionam, ainda, ao surgimento de outros conceitos e tipologias. como as cidades competitivas, as criativas, as sustentáveis, as resilientes e as verdes (KITCHIN, 2015). Em meados dos anos 90, o Novo Urbanismo, o movimento “smart growth” e outras tendências também se consolidaram com estratégias para tornar as cidades mais compactas, ordenadas, sustentáveis e agradáveis para a comunidade. Foi um período de efervescência de ideias e novos conceitos sobre as cidades.
Leia também: Cidade inteligente – uma tipologia urbana inovadora
Observando em retrospectiva, alguns casos desse período podem ser conectados à essa tipologia: Cyberjaya e Putrajaya, na Malásia, e a Multifunction Polis (MFP), perto de Adelaide, na Austrália (SÖDERSTRÖM; PAASCHE; KLAUSER, 2014). Ambas foram desenvolvidas com o intuito de usar a infraestrutura de TIC existente na época para orientar o funcionamento da cidade e automatizar e otimizar seus processos (SÖDERSTRÖM; PAASCHE; KLAUSER, 2014). Também houve o lançamento do projeto de cidade digital de Amsterdã e da rede da área metropolitana de Genebra (ANTHOPOULOS, 2016), além dos casos australianos de Brisbane e Blacksbourg, onde as TICs facilitaram a participação social, o acesso à informação e à serviços públicos, além de estreitar a exclusão digital (ANTHOPOULOS; FITSILIS, 2013).
O discurso de cidade inteligente começou a se unificar e a trazer pontos claros de convergência, como tecnologia, inovação e globalização. Caragliu, Bo e Nijkamp (2011) reforçam que foi em 1990 que esse viés conquistou maior interesse, quando as TICs atingiram uma ampla audiência nos países europeus. Para Tompson (2017), foi nesta década que o conceito de cidade inteligente se popularizou como um discurso que defende soluções tecnológicas para os desafios da governança urbana. O termo passou a ser atrelado à aplicação de TICs em várias esferas da vida do cidadão e os interconectá-los para criar um sistema comum chamado cidade inteligente. No campo científico, os primeiros estudos sobre a terminologia cidade inteligente também surgiram nos anos 90 (TAN, 1999), embora as pesquisas tenham se disseminado com maior impacto no final da década de 2000 (ZHANG et al, 2019). Em muitos casos, os principais achados traziam visões de um futuro onde as tecnologias da informação e comunicação seriam o principal componente facilitador da democracia e da gestão urbana.
Durante os anos 2000 as cidades foram profundamente afetadas pela ascensão do uso generalizado da internet em todo o mundo (MARCHETTI; OLIVEIRA; FIGUEIRA, 2019). Houve a criação de sites, plataformas de comunicação e meios de acesso do cidadão aos (novos) serviços digitais. Os teóricos da década de 1990 a 2000 previam que a internet permitiria que as pessoas acessassem bens e serviços de qualquer local do mundo e que as principais funções e serviços seriam transferidos para o mundo digital (ATKINSON, 1998; AURIGI; GRAHAM, 2000; MARVIN, 2000; CRANG; GRAHAM, 2007). Assim, embora ainda haja certa imprecisão sobre o termo, as TICs se tornaram um elemento central em todas as abordagens de cidade inteligente, mesmo quando combinadas a outros aspectos da cidade, tais como as pessoas, o mercado e demais recursos urbanos.
O movimento das cidades inteligentes que surgiu nos anos 80 e 90 era um movimento com diferentes origens e perspectivas que, apesar de compartilhar o propósito de encontrar novas formas de fazer e viver as cidades, ainda não possuía definições claras ou diretrizes comuns. O contexto das cidades inteligentes passou a ser melhor definido a partir de publicações acadêmicas e experimentações realizadas após esse período com a apropriação dessa terminologia. É possível dizer que, nos anos que se seguiram, muitas cidades desenvolveram as condições necessárias um modelo urbano que incorpora sistemas de informação digital à gestão urbana, mas que ainda depende da compreensão que a tecnologia constitui um meio e não o fim em si mesma.
A segunda onda das cidades inteligentes
Tang et al. (2019) afirma que por volta de 2005 o termo “cidade inteligente” já era utilizado para se referir à aplicação de TICs e à capacidade de processamento de informações aos problemas do desenho urbano. Desde então, o termo tem sido usado para a maioria das inovações impulsionadas pela tecnologia em planejamento, desenvolvimento, gestão e operação urbana (SOKOLOV et al., 2019; PRAHARAJ; HAN, 2019).
Em meados dos anos 2000, diferentes empresas de base tecnológica como Cisco, IBM, Siemens, Microsoft, Huawei, Hitachi, Samsung, Telefônica, Oracle, SAP, HP, entre outras, passaram a utilizar o termo “cidade inteligente ” para designar a aplicação de sistemas para integrar e otimizar a operação, infraestrutura e serviços urbanos (MARCHETTI; OLIVEIRA; FIGUEIRA, 2019; FREIRE- MEDEIROS; FREITAS, 2020; BILBIL, 2016; PINHEIRO JÚNIOR, 2019, STA, 2016; BATTY et al., 2012). Para superar os efeitos de uma recessão econômica, estas empresas de tecnologia buscaram proeminência em um mercado cujo valor cumulativo foi estimado em três trilhões de dólares para 2020 (ANTHOPOULOS, 2016), representando novas possibilidades para a comercialização de produtos (BATTY et al., 2012).
A IBM foi pioneira nesse contexto, impulsionada tanto pela mudança de foco da empresa de hardware para se concentrar em consultoria e software, quanto por estudos que identificaram as cidades como um enorme mercado inexplorado, levando-a a ganhar bilhões e se tornar líder de mercado no negócio de tecnologias urbanas inteligentes (SÖDERSTRÖM; PAASCHE; KLAUSER, 2014). Estas empresas oferecem parcerias, consultorias, planejamento estratégico, análise de negócios, interpretação de metadados, engenharia de software, sistemas, sensores e outros serviços, enquanto constroem um portfólio de cidades que, supostamente, são “salvas” por suas soluções inteligentes em diferentes áreas: como edificações, transporte e energia (FREIRE-MEDEIROS; FREITAS, 2020; ANTHOPOULOS, 2016; DESDEMOUSTIER et al., 2019).
Com o intuito de se posicionarem como atores centrais dessa tipologia urbana, grandes corporações se tornaram as principais produtoras de um discurso sobre os benefícios das cidades inteligentes, privilegiando o papel das TICs na gestão eficiente da infraestrutura e dos serviços urbanos (SÖDERSTRÖM; PAASCHE; KLAUSER, 201; PRAHARAJ; HAN, 2019). Entretanto, elas não compartilham totalmente da mesma concepção de cidades inteligentes, em parte devido a diferentes ethos corporativos e em parte porque são concorrentes (KITCHIN, 2015).
O ano de 2008 pode ser considerado uma virada na história das cidades inteligentes, por três principais razões, segundo Walravens (2014):
- maior número de assinatura de banda móvel do que fixa ativa;
- mais dispositivos do que pessoas conectadas à internet;
- mais da metade da população mundial vivendo em cidades.
O primeiro ponto mostra a crescente importância da conectividade móvel, representada pelos smartphones, outros dispositivos móveis e a maior presença de novos softwares e aplicativos na vida dos consumidores cidadãos (WALRAVENS, 2014). O segundo ponto mostra a conectividade de rede cada vez mais presente nos objetos e no entorno da vida cotidiana, como sensores, digitalização, computação em nuvem, internet das coisas (IoT) e serviços inovadores (SILICON LABS, 2013; WALRAVENS, 2014; YIN et al, 2015).
Em relação ao terceiro ponto elencado por Walravens (2014), é possível afirmar que o aumento populacional e a migração para as cidades vem sendo discutido desde a Revolução Industrial, marco histórico que teria acelerado o processo de urbanização e, como consequência, provocado seu desenvolvimento sem planejamento adequado, com grandes aglomerações e condições insalubres (VARGHESE, 2016). Assim, apesar de não ser um problema recente, foi em 2008, quando a concentração urbana passou a ser equiparada com a população rural, que tal problemática ganhou maior destaque. O aumento populacional acelerado provoca maiores e mais complexos desafios na área técnica, social e urbanística, considerando que cidades são também áreas espacialmente limitadas. Alguns desses desafios são: mobilidade, poluição, alta taxa de criminalidade, desemprego, envelhecimento da população, alimentação, gerenciamento de resíduos, consumo de energia, entre outros (ALAWADHI et al., 2011; KUMAR; SINGH; GUPTA; MADAAN, 2018).
Além dos três pontos elencados, foi também em 2008, em Nova York, que a IBM deixou um marco na trajetória das cidades inteligentes com a apresentação do projeto IBM Smarter Planet a líderes políticos, recebendo aprovação do ex-presidente Obama no ano seguinte e garantindo avanços tecnológicos nas cidades com o desenvolvimento de rede de sensores e internet das coisas (SU; LI; FU, 2011), além de atrair grande atenção para o conceito de cidade inteligente. A “cidade inteligente” da IBM é Smarter Planet aplicado a uma região específica (SU; LI; FU, 2011). Segundo Mora e Deakin (2019), esse foi um empreendimento comercial da IBM para posicionar a empresa na vanguarda da inovação em cidades. Os EUA foram um dos primeiros países a lançar um projeto com essa visão (YIN et. al, 2015) e, em 2009, ele foi também apresentado na China (SU; LI; FU, 2011).
Esse projeto pioneiro estabeleceu a compreensão de cidade inteligente como um processo trifásico padronizado: i) instrumentação, ii) interconexão e iii) inteligência (HARRISON, et al, 2010), com capacidade de capturar e integrar dados em tempo real usando sensores, medidores, eletrodomésticos e toda uma gama de dispositivos pessoais com dados integrados em uma plataforma de comunicação de tais informações entre os vários serviços da cidade, a qual permitiu a inclusão de serviços sofisticados de análise, modelagem, otimização e visualização de dados para tomar melhores decisões (PRAHARAJ; HAN, 2019). Essa estratégia concentra-se principalmente na aplicação da tecnologia da informação a todas as esferas da vida, incorporando sensores e equipamentos a hospitais, redes de energia, ferrovias, pontes, túneis, estradas, edifícios, sistemas de água e todos os espaços possíveis, integrando-as (SU; LI; FU, 2011).
Quando impulsionado pelo lucro de empresas globais de alta tecnologia em conluio à governança da cidade, a cidade inteligente passa a ser uma uma forma competitiva de “empreendedorismo urbano” com pouco espaço para as pessoas comuns (HOLLANDS, 2014). Para Söderström, Paasche e Klauser (2014): “na superfície, o enredo das cidades inteligentes dominantes é sobre eficiência e sustentabilidade, mas por baixo é principalmente uma ferramenta estratégica para ganhar uma posição dominante em um mercado enorme”. Essa cidade inteligente, tecnologicamente determinista, foi, em alguns casos, impulsionada pelas corporações e se expandiram com os governos de países, estados e cidades que trabalham em conjunto com essas empresas multinacionais para criar uma narrativa tecnológica do desenvolvimento urbano (PRAHARAJ; HAN, 2019).
Mora e Deakin (2019) consideram que a literatura produzida por empresas como a Cisco Systems, Hitachi, e a IBM levou ao crescimento do modelo corporativo de cidade inteligente. Desde então, o termo tem sido usado para a maioria das inovações em planejamento urbano, desenvolvimento e operação (SOKOLOV et al., 2019). Em 2011, a marca comercial ‘smarter cities’ foi oficialmente registrada como pertencente à IBM, um marco na luta entre empresas de tecnologia por visibilidade e legitimidade no mercado de cidades inteligentes (SODERSTROM; PAASCHE; KLAUSER, 2014).
De todo modo, segundo YIN et al. (2015), o conceito de cidades inteligentes continuou a crescer e a evoluir apesar das iniciativas corporativas. Outros movimentos foram iniciados em outras partes do mundo como o Pacto de Prefeitos das Cidades Europeias para reduzir as emissões de CO2 em mais de 20% até 2020; a Estratégia Europa 2020 para um crescimento inteligente, investindo em educação, áreas de pesquisa e inovação, em tecnologias e recursos, economia de baixo carbono e criação de empregos e redução da pobreza (COCCHIA, 2014). Nesse mesmo ano, na Europa surgia o crescente interesse em impulsionar um futuro energético sustentável (MORA; DEAKIN, 2019). Assim, o movimento passou por um conceito fortemente conectado a palavras-chave como eficiência energética, redes inteligentes, mudanças climáticas, consumo de energia, medidores inteligentes e energia renovável,
Em âmbito acadêmico, um aumento expressivo de publicações sobre o tema pode ser verificado justamente após 2009, quando o conceito se estabelece de fato como um novo campo de investigação científica, embora as origens contemporâneas das cidades inteligentes datem de 1990 (MORA; DEAKIN, 2019). A literatura não incorporou o uso mais amplo do termo até 2010, quando um número crescente de estudos começou a usar a terminologia de cidades inteligentes (ISMAGILOVA et al., 2019). Segundo Zheng et al. (2020) este conceito passou a figurar, de forma mais evidente, na literatura científica a partir de 2010, dentro da discussão sobre mudanças climáticas e urbanização das cidades.
Bibri e Krogstie (2017) chamam a atenção para o período após o surgimento de projetos de cidades inteligentes apoiados pela União Europeia, desde 2010, que segundo Jucevicius, Patašien ̇e Patašius (2014) culminou em uma proliferação de publicações acadêmicas sobre o tema cidade inteligente. Desde 2011, uma série de contribuições analisou mais criticamente o fenômeno sob diferentes pontos de vista: economia política, estudos de ciência e tecnologia, estudos de governabilidade e crítica ideológica, afastando a pesquisa do clima de comemoração em torno das cidades inteligentes (HOLLANDS, 2008). A partir de 2013, os estudos tendem a adotar uma abordagem mais holística, referenciando várias dimensões e aspectos humanizados das cidades inteligentes (ISMAGILOVA et al., 2019).
A terceira onda das cidades inteligentes
Com a disseminação do conceito de cidade inteligente, e suas inúmeras iniciativas realizadas ao redor do mundo, alcançou-se a possibilidade de avaliar os resultados e a maturidade dessa tipologia. Nas primeiras duas décadas de pesquisa sobre cidades inteligentes, quando a utopia tecnocêntrica imaginada pelo setor empresarial se enraizou e começou a crescer, houve um hype em relação aos benefícios do progresso tecnológico. Nos estágios iniciais do movimento da cidade inteligente o foco esteve nos benefícios proporcionados pelas TICs (NICOLAS; KIM; CHI, 2019) e a percepção sobre o exagero na promessa de seus resultados foi seguida por uma redução das expectativas em experimentos que adotaram os seguintes princípios orientadores: determinismo tecnológico, forte orientação para o mercado, processo de desenvolvimento de cima para baixo e modelo de dupla hélice (MORA; DEAKIN, 2018).
O contexto atual envolve um mercado crescente e competitivo de produtos e serviços inteligentes, uma ampla rede de cidades que se autodenominam inteligentes e um número crescente de alianças e grupos que congregam acadêmicos, profissionais e representantes governamentais para definir o futuro urbano e promover a evolução desse modelo (ANTHOPOULOS, 2016). A adoção de tecnologias inteligentes ajudou a transformar os serviços públicos e privados, integrar setores e funções e fornecer informações em tempo real, melhorando a vida urbana e desencadeando uma nova onda de criação de riqueza na área econômica (LETAIFA, 2015).
Entretanto, apesar de se defender que cidades inteligentes trazem mudanças sociais positivas com a adoção das TICs, também foram apontados efeitos negativos e lacunas em seu planejamento e execução (KUMMITHA; CRUTZEN, 2017), como o aumento das desigualdades e da exclusão, o controle corporativista, a utilização desse modelo como um recurso de marketing, a “fetichização da tecnologia”, a falsa visão de que essa tipologia é o único meio efetivo de transformação urbana e a falta de colaboração entre os diferentes atores urbanos em sua concepção, implantação e operacionalização (EDGE, 2020; HOLLANDS, 2008; GONZÁLEZ, 2016; FREIRE- MEDEIROS; FREITAS, 2020; VANOLO, 2016; BIFULCO et al., 2015; KITCHIN, 2014).
Leia também: As sete principais críticas à tipologia “cidade inteligente”
Um conceito padronizado e movido pelo determinismo tecnológico e interesse corporativista é muito limitado (MORA; DEAKING, 2019) e criou uma arena de padronização que tenta esclarecer o domínio e homogeneizar soluções (ANTHOPOULOS, 2016). A cidade não pode perder sua identidade em função da tendência à homogeneização ou da importação de modelos internacionais incompatíveis com suas características e necessidades (COPAJA-ALEGRE; ESPONDA-ALVES, 2019). Ainda que o conceito de cidade inteligente seja dependente da adoção de tecnologias, ela é apenas uma primeira camada para a implantação efetiva do conceito (CAPDEVILA; ZARLENGA, 2015). Na terceira onda das cidades inteligentes, começa a se intensificar cada vez mais a necessidade de se voltar ao cidadão.
Nas últimas três décadas da trajetória da tipologia de cidade inteligente a sociedade teve pouca influência no desenvolvimento das cidades inteligentes, o que fez com que muitos projetos fracassassem ao subestimar os componentes não técnicos e tecnológicos das cidades inteligentes (MORA; DEAKIN, 2018). Após sérias críticas a essa tipologia, uma nova gama de definições de cidade inteligente direcionou a sua ênfase a fatores não-tecnológicos, como criatividade, capital humano, educação e aprendizagem, inclusão social e governança (PRAHARAJ; HAN, 2019). Assim, para ser considerada uma cidade inteligente, além de estar conectada por meio das TICs, a cidade deve desenvolver o capital humano, buscar soluções em sustentabilidade, diminuir os impactos negativos da urbanização e tornar a qualidade de vida da população uma consequência natural (CAMBOIM; ZAWISLAK; PUFAL, 2019).
Mais recentemente, autoridades municipais se concentraram no financiamento de iniciativas que visam a infraestrutura de TICs, mas também nas condições de contexto que conduzem à adoção habilidosa de tais tecnologias, ensinando as pessoas a fazerem o melhor uso dela e mostrando aos cidadãos e empresários qual é o futuro de suas cidades, a exemplo das políticas de Amsterdam Smart City, Southampton’s Smartcities Card e Smart Santander (CARAGLIU; DEL BO; NIJKAMP, 2015). Esta última cidade, além de suportar serviços e operações genéricas de uma cidade inteligente, com apoio da Comissão Europeia se tornou a maior plataforma de implantação de IoT do mundo (SILVA; KHAN; HAN, 2018). Sua rede inclui mais de 12.500 sensores para monitorar o número de pedestres, as vagas de estacionamento disponíveis, o volume restante de contêineres de lixo, diversos aspectos ambientais e outras aplicações, levando em conta a resposta dos usuários, cidadãos, aos serviços entregues pela cidade (SILVA; KHAN; HAN, 2018). A cidade ainda definiu como uma das principais funções do projeto a avaliação da aceitação social de tecnologias e serviços de IoT (SMART SANTANDER, 2020), tendo como eixos: transporte inteligente e comunidade inteligente (SILVA; KHAN; HAN, 2018).
Fernández (2017) argumenta que as cidades podem se definir “inteligentes” apenas ao se concentrarem em seu capital humano e social, incluindo comunicação e participação, tanto tradicional quanto moderna. Para transformar a cidade e garantir melhorias efetivas na saúde, transporte, educação e serviços, é necessária uma visão sistêmica que integre todos os seus setores de forma equilibrada (LETAIFA, 2015). Desdemoustier, Crutzen e Giffinger (2019) descrevem dois grandes caminhos para apresentação das cidades inteligentes a partir do contexto histórico da discussão. O primeiro é exatamente um modelo tecnológico tendo por base os produtos e serviços das empresas tecnológicas e, o segundo, um modelo holístico, humano e sustentável que pode ser considerado um amadurecimento do primeiro.
No modelo tecnológico, segundo Desdemoustier, Crutzen e Giffinger (2019), a questão do lugar e da importância das tecnologias no conceito de cidade inteligente é uma discussão central. A implementação de tecnologias, em especial das tecnologias de informação e comunicação, as TICs, na infraestrutura da cidade, é promovida como meio para aumentar a eficácia e eficiência na cidade. O desenvolvimento é medido pela implantação de sensores, redes e sistemas inteligentes. Nesta abordagem o foco é no poder transformador da tecnologia. A segunda abordagem é orientada às pessoas (BIBRI; KROGSTIE, 2017), provocando a necessidade de uma visão mais humanizada da cidade inteligente (LARSEN, 2015), quando as TICs ou outras tecnologias são consideradas um meio para atingir certos objetivos em vez de um fim em si.
Desdemoustier, Crutzen e Giffinger (2019) propoem uma abordagem holística, baseada numa perspectiva mais abrangente do fenômeno e onde os autores enfatizam o papel da infraestrutura humana, do capital humano e da educação no desenvolvimento das cidades. Essa abordagem é apoiada também por autores como Hollands (2008), Mora e Deakin (2019). Uma cidade inteligente é operada por pessoas, um componente central do conceito, e tornam-se os focos do desenvolvimento sustentável porque representam os principais consumidores e distribuidores de bens e serviços (DESDEMOUSTIER, CRUTZEN; GIFFINGER, 2019).
A gestão de cidades inteligentes é mais complexa que as cidades tradicionais, envolvendo a coordenação entre várias partes interessadas que interagem em diferentes subsistemas, como transporte, educação e meio ambiente, em um único macrossistema que integra TICs aos recursos da cidade (LETAIFA, 2015). Cidades inteligentes efetivas são resultado de processos dinâmicos nos quais atores do setor público e privado atuam em uma plataforma aberta de inovação para alcançar um objetivo comum, uma forma de co-criar valor para o benefício geral da sociedade (LEE; HANCOCK; HU, 2013; LETAIFA, 2015).
No entanto, na visão de Mora e Deakin (2019) mesmo sendo a visão holística a estratégia mais adequada para o desenvolvimento das cidades inteligentes a pesquisa que investiga o caminho holístico ainda permanece numa fase preliminar e ainda não foi capaz de fornecer o conhecimento necessário para entender claramente como passar da teoria para a prática (LEE et al., 2014; YIGITCANLAR; KAMRUZZAMAN, 2018; BOLICI; MORA, 2015; MORA; BOLICI, 2016, 2017; ANGELIDOU, 2017). O que se sabe de pronto é que a tecnologia representa uma condição necessária, mas não suficiente para um crescimento inteligente, e que, para que ela possa atuar sinergicamente e gerar desenvolvimento, são essenciais os sujeitos presentes no território, tornando a cooperação e a participação destes atores um elemento estratégico para a extensão e apropriação das TICs, assim como, para atingir os objetivos de uma cidade e território inteligentes (BERRO, 2013).
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