Cidades inteligentes: abordagem de implantação e conexão com o ecossistema de inovação urbana
A implementação eficaz de estratégias para cidades inteligentes exige um planejamento detalhado e alinhado a objetivos claros (Bilbil, 2016; Fromhold-Eisebith & Eisebith, 2019). Esses planejamentos podem considerar fatores como recursos disponíveis, marcos regulatórios, estruturas políticas, histórico e governança (Bibri & Krogstie, 2017; Letaifa, 2015; Kitchin, 2015). As estratégias podem ser amplas ou específicas, aplicando inteligência em funções pontuais ou transformando áreas urbanas inteiras (Yin et al., 2015; Lee; Hancock; Hu, 2013).
Este planejamento é particularmente desafiador devido às expectativas diversificadas de grupos relevantes, como governos, empresas e cidadãos (Kummitha & Crutzen, 2017). Para superar esses desafios, é fundamental integrar infraestruturas existentes e fomentar parcerias entre líderes políticos, gestores, empreendedores e comunidades locais (Berra, 2013; Borsekova et al., 2018). Nesse cenário, dois modelos têm se destacado para estruturar iniciativas de cidades inteligentes: as abordagens top-down e bottom-up, amplamente discutidas na literatura (Walravens, 2014; Mora et al., 2019; Capdevila & Zarlenga, 2015).
1 A Abordagem top-down em cidades inteligentes: planejamento estruturado e governança centralizada
Na dinâmica “de cima para baixo” em cidades inteligentes, o governo estabelece a visão e a estrutura de governança (Mora; Deakin; Reid, 2019). As ações são implementadas a partir de decisões centralizadas em instituições públicas. Essa abordagem pode envolver especialistas, consultores e parcerias entre as organizações públicas e privadas (Capdevila; Zarlenga, 2015). No entanto, mesmo que possa existir algum grau de participação de outros integrantes do ecossistema de inovação urbana, essa abordagem normalmente ignora a diversidade de partes interessadas e muitas vezes falha em desenvolver estratégias que atendam às expectativas dos cidadãos (Capdevila; Zarlenga, 2015; Simonofski et al., 2017).
A abordagem top-down se manifesta de diferentes formas. Em uma delas, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) são utilizadas para monitorar atividades urbanas, integrar infraestruturas críticas, processar grandes volumes de dados e interagir com a infraestrutura urbana, adaptando-a conforme necessário (Walravens, 2014; Bibri; Krogstie, 2017). Em outra, há a construção de espaços urbanos inteiramente novos, indo além de adaptações e transformações realizadas em cidades já existentes. Abaixo, exploramos brevemente algumas dessas manifestações por meio dos casos do Rio de Janeiro, de Porto Alegre e de Songdo.
a) Centros de Controle e Operações: Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Para integrar a cidade e obter uma visão geral de suas operações, muitas cidades optam pela criação de uma “sala de controle” ou hub onde são centralizadas as informações e a gestão, permitindo a previsão e otimização de recursos, o planejamento de ações em diferentes áreas da cidade, além de monitorar segurança, meio ambiente e a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos (Walravens, 2014).
O Centro de Operações Rio (COR) é um equipamento da Prefeitura Municipal, operando ininterruptamente, sete dias por semana, funcionando como “quartel-general” para a integração das operações urbanas. Por meio dele, realiza-se o monitoramento em tempo real da cidade, com a capacidade de minimizar impactos na rotina do cidadão e em grandes eventos, antecipar soluções, alertar sobre riscos e medidas em casos de emergência, além de apoiar a tomada de decisões mais rápidas e informadas pela administração municipal (COR, 2020; Angelidou, 2014).
Embora promissor, Freire-Medeiros e Freitas (2020) questionam se os benefícios dessa inteligência estão sendo distribuídos equitativamente por toda a cidade ou se apenas uma parte dela é contemplada ao se promover o Rio de Janeiro como cidade inteligente. Criticado tanto na academia quanto na mídia, o projeto de cidade inteligente do Rio contrasta com a realidade da megacidade, que enfrenta altos índices de criminalidade, desigualdade social e questões ambientais (Angelidou, 2014).
A iniciativa de Porto Alegre, embora menos midiática e grandiosa do que a do Rio de Janeiro, com seu Centro Integrado de Comando (CEIC), reúne os serviços públicos da cidade em um “centro de inteligência”, com foco especial em segurança. Sua infraestrutura, criada em 2012, foi viabilizada por um investimento de R$ 5,6 milhões da prefeitura, abrangendo a construção da sede e a implementação de tecnologias como videowall, software, hardware e nobreak. O CEIC busca a plena integração da infraestrutura urbana e o compartilhamento de informações, com mais de 1.000 câmeras de monitoramento em tempo real, sete dias por semana, para apoiar ações preventivas e de emergência. Sua missão é “monitorar a cidade e integrar os serviços públicos em um ambiente tecnológico e transparente para a proteção do cidadão” (Porto Alegre, 2021).
Moreira (2015) pesquisou a implementação do centro e destacou que a principal contribuição do CEIC para a integração dos serviços foi o estabelecimento de uma infraestrutura tecnológica comum e centralizada. Com isso, a tecnologia passou a ser um elemento fundamental para gerar informações que qualifica a tomada de decisão da gestão municipal de Porto Alegre. Apesar de ainda apresentar índices elevados na área de segurança, que é o foco principal do CEIC, a cidade tem reduzido os índices de homicídios, feminicídios e roubos com morte (GHZ Segurança, 2021).
b) Cidades e áreas construídas do zero: Songdo.
Em um modelo top-down, com planos centralizados de corporações multinacionais ou parcerias público-privadas, cidades inteiras ou áreas de cidades foram construídas do zero, indo além das transformações de cidades já existentes. Exemplos notáveis incluem Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, Songdo, na Coreia do Sul, e Living PlanIT Valley, em Portugal (Shelton; Zook; Wiig, 2014; Kitchin, 2014; Albino; Berardo, Dangelico, 2015; Tompson, 2017).
Songdo é um megaprojeto de cidade inteligente construído em uma área recuperada do Mar Amarelo, a 65 km de Seul, cobrindo 48,26 km² (Anthopoulos, 2016; Angelidou, 2014). Com um orçamento superior a 38 bilhões de dólares, a construção foi uma parceria público-privada entre a cidade de Incheon e as empresas Gale International, POSCO e CISCO (Anthopoulos, 2016). Songdo foi projetada como um hub de negócios, oferecendo espaços mistos conectados por uma rede tecnológica que integra residências, escritórios e escolas, permitindo que os residentes controlem funções de suas casas remotamente e interajam via vídeo com o sistema de telepresença da CISCO (Angelidou, 2014). Apesar dos esforços, o projeto falhou em atrair investimentos estrangeiros ao nível esperado e é visto mais como um subúrbio rico de Incheon do que um centro global de negócios (Angelidou, 2014).
Embora iniciativas de cidades inteligentes do zero como essa sejam mais raras, muitas cidades são influenciadas pela governança centralizada e tecnologias de empresas de elite (Shelton; Zook; Wiig, 2014). A abordagem top-down oferece eficiência e eficácia por meio de soluções tecnológicas, mas também é criticada por seu foco comercial, em que soluções são fornecidas sem necessariamente atender às reais necessidades da sociedade (Walravens, 2014; Bilbil, 2016).
Uma cidade inteligente não pode ser construída sem o suporte tecnológico adequado, mas é crucial que essas tecnologias atendam às necessidades dos cidadãos e não se tornem um “playground de interesses comerciais” (Fromhold-Eisebith; Eisebith, 2019). Movimentos como esse, negligenciam geralmente a contribuição direta dos cidadãos, restringindo seu papel a consumidores ou usuários de tecnologias (Hollands, 2014; Capdevila; Zarlenga, 2015). O potencial criativo e inovador das iniciativas de base é frequentemente ignorado, o que limita a oportunidade de que os cidadãos se tornem atores ativos no processo de construção de cidades inteligentes (Mora; Deakin; Reid, 2019; Simonofski et al., 2017). A falta de engajamento das partes interessadas e o desrespeito pelas condições locais contrastam com os princípios teóricos e práticos de cidades inteligentes (Caragliu; Del Bo, 2019).
2 A abordagem bottom-up em cidades inteligentes: inovação aberta e participação cidadã
A outra abordagem mais comum na operacionalização de cidades inteligentes, com um ponto de vista “de baixo para cima”, é aquela que se apoia em uma estrutura de iniciativas que surgem organicamente das pessoas que vivem, trabalham e atuam na cidade, por meio da auto-organização e de um processo desregulamentado (Walravens, 2014; Mora; Deakin; Reid, 2019; Capdevila; Varlenga, 2015). Explorar e promover as necessidades e ideias dos cidadãos pode ser uma resposta aos desafios existentes (Simonofski et al., 2017). A abordagem bottom-up representa uma inovação aberta centrada no usuário (Mora; Deakin; Reid, 2019).
Este movimento, liderado por cidadãos e movimentos sociais, rejeita o controle e a gestão de um órgão ou tecnologia central, especialmente o envolvimento de grandes empresas privadas, para valorizar iniciativas individuais ou coletivas que atendam às necessidades reais do dia-a-dia da cidade (Walravens, 2014; Capdevila; Varlenga, 2015). Como resultado, envolve o esforço de diferentes partes interessadas (Bifulco, 2015) e pode se refletir em intervenções e projetos de pequena escala, baixo custo, curto prazo ou temporárias, muitas vezes sem autorização ou apoio do poder público, caracterizadas como urbanismo tático ou urbanismo de guerrilha.
Esta é uma forma pela qual as pessoas transformam o uso e desafiam os significados do espaço urbano ocupado por elas, reforçando a concepção de que os cidadãos não precisam ou não devem esperar da administração pública as mudanças que desejam e que podem criar soluções criativas e inovadoras para os desafios enfrentados (Depiné, 2020b).
Além da sociedade civil, os projetos e ações em cidades inteligentes também podem partir de empresas ou startups que procuram resolver de forma inovadora um problema urbano ou possibilitem que as pessoas interajam mais e melhor com a cidade (Walravens, 2014; Bilbil, 2016). Entidades comerciais podem criar soluções e iniciativas que ajudem a tornar as cidades mais inteligentes, ainda que não sejam produtos ou serviços de cidades inteligentes.
Esta é uma abordagem mais informal que a top-down e baseia-se na demanda, dando ênfase às necessidades e estilo de vida de seus consumidores e usuários, e não necessariamente à tecnologia ou oferta de serviços (Bilbil, 2016). Ir além do envolvimento de grandes empresas multinacionais, ainda que em conjunto com o governo, e trazer empresas locais, pode contribuir para a adaptação de soluções tecnológicas generalistas e padronizadas às necessidades locais (Caragliu; Del Bo, 2019).
A grande crítica a esse modelo é que, embora tais iniciativas tenham impacto positivo, especialmente em pequena escala e como resposta às necessidades locais, por não seguirem um plano mestre, elas podem se opor ou prejudicar os planos, objetivos e decisões que podem tornar a cidade um lugar melhor para todos, tendo impacto positivo em grande escala (Walravens, 2014). Iniciativas cidadãs são importantes, mas não devem ser a únicas fontes de mudanças (Walravens, 2014). A contribuição da sociedade civil é essencial para a cidade inteligente, mas a de especialistas e tomadores de decisão experientes também é valiosa (Simonofski et al., 2017).
3 A abordagem combinada em cidades inteligentes: integração para a inteligência coletiva
As abordagens top down e bottom up possuem vantagens e limitações. Isoladamente, dificilmente conseguem promover mudanças significativas nas cidades (Walravens, 2014). No entanto, a combinação equilibrada dessas perspectivas pode transformar a cidade em uma plataforma que fomenta a inteligência coletiva, criando um ambiente propício à inovação urbana. Essa abordagem atua como um ponto de encontro entre o setor público, a iniciativa privada e a sociedade civil, permitindo a colaboração, a geração de valor e a inovação conjunta (Walravens, 2014; Capdevila; Zarlenga, 2015; Mora; Deakin, 2018).
Embora possam parecer forças opostas, essas perspectivas são complementares e, quando integradas, promovem sinergias que fortalecem a capacidade de inovação urbana (Capdevila; Zarlenga, 2015). A abordagem combinada é uma “terceira via” que supera a dicotomia entre as abordagens tradicionais, promovendo um equilíbrio entre tecnologia, instituições e pessoas (Bilbil, 2016; Fromhold-Eisebith; Eisebith, 2019).
Cidades como Amsterdã, Helsinque, Viena and Barcelona exemplificam a implementação bem-sucedida dessa abordagem híbrida. Em todas elas, os governos municipais desempenham um papel ativo no ecossistema, mas evitam centralizar as decisões, exercendo uma liderança voltada a:
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Promover um ecossistema colaborativo (aberto, inclusivo e coeso, reunindo indivíduos e organizações diversas);
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Estabelecer uma estrutura estratégica capaz de direcionar esforços na mesma direção (aproveitando a inteligência coletiva e os interesses comuns);
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Permitir o crescimento do ecossistema colaborativo;
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Estimular processos de desenvolvimento de baixo para cima (Mora; Deakin; Reid, 2019, p. 8).
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Os documentos de política que definem a estratégia para cidades inteligentes devem incluir:
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Uma visão de longo prazo, destacando motivações e objetivos que orientem a transformação;
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Resultados e metas esperados com a aplicação de soluções de TIC;
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Principais áreas de foco;
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Equipes responsáveis por implementar e acelerar a estratégia (Mora; Deakin; Reid, 2019, p. 12).
O sucesso na transformação de uma cidade em um espaço mais inteligente depende da colaboração entre representantes políticos, gestores públicos, empresários, cidadãos e comunidades locais (Borsekova et al., 2019). Estratégias eficazes são construídas com o engajamento direto de empresas, usuários finais e partes interessadas locais, com recursos e responsabilidades compartilhados (Israilidis et al., 2019).
Decisões relacionadas à implementação, aos objetivos e ao monitoramento de iniciativas devem ser conduzidas por autoridades locais. Essas decisões devem envolver todos os stakeholders, ser orientadas pela demanda e supervisionadas pelos governos locais. Além disso, é essencial dedicar mais esforço para avaliar os impactos dessas iniciativas (Caragliu; Del Bo, 2019).
As recomendações para um modelo de ação eficaz em cidades inteligentes
Para Bifulco et al. (2015) e Simonofski et al. (2017) (2015) e Simonofski et al. (2017), a abordagem combinada ou híbrida conecta-se diretamente aos modelos de “tríplice” e “quádrupla hélice” da inovação, ao integrar a atuação conjunta de atores e recursos distintos, porém complementares.
O modelo da tríplice hélice é considerado uma referência fundamental em sistemas de inovação baseados em conhecimento, abrangendo as relações entre universidades, indústria e governo. Esses três pilares operam no processo de criação e capitalização de conhecimento que impulsiona a inovação (Lombardi et al., 2012). Já o modelo da quádrupla hélice adiciona a sociedade civil como um elemento decisivo, tornando-a um pilar da governança e gestão urbana (Bifulco et al., 2015).
Enquanto o modelo da tríplice hélice enxerga os cidadãos como consumidores passivos, no modelo de quádrupla hélice, suas ideias e criações são ativamente incentivadas para atender às necessidades sociais (Simonofski et al., 2017). Essa atualização considera que, em ambientes urbanos complexos, o capital humano, cultural e social, assim como a governança e o engajamento cívico, moldam as relações entre as hélices e determinam o desenvolvimento inteligente das cidades (Lombardi et al., 2012).
Contudo, mesmo em cidades que adotam o modelo de quádrupla hélice, as organizações da sociedade civil ainda são sub-representadas, e seus membros não estão plenamente integrados aos ecossistemas colaborativos. Isso reflete a necessidade de maior atenção e investimento para transitar efetivamente da tríplice à quádrupla hélice (Mora; Deakin; Reid, 2019). Essa transição ocorre de forma gradual, mas é essencial para maximizar o potencial de inovação.
Ambientes colaborativos e habitats de inovação desempenham um papel estratégico no sucesso do modelo de quádrupla hélice, pois ativam uma inteligência coletiva que impulsiona a criatividade e os processos de inovação urbana (Mora; Deakin, 2018). Universidades, centros de pesquisa e grandes empresas tecnológicas podem liderar essa transformação, cooperando para projetar soluções inovadoras e fornecer serviços inteligentes (Dameri et al., 2019).
Além disso, a cooperação entre atores de inovação e líderes urbanos ou sociais cria novas oportunidades que garantem a viabilidade e a sustentabilidade dos projetos de cidades inteligentes, ainda que em uma perspectiva de longo prazo (Zygiaris, 2013). Para isso, é crucial que diferentes partes interessadas se engajem e formem coalizões que colaborem para o sucesso das estratégias. O alinhamento de interesses e a colaboração ativa entre governo, indústria, academia e sociedade civil são determinantes para o êxito no desenvolvimento e implementação das iniciativas de cidades inteligentes (Mora; Deakin; Reid, 2019).
Ágatha Depiné
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