Cidade inteligente – uma tipologia urbana inovadora
Cidades em todo o mundo precisam criar novas soluções e se tornar mais inteligentes e sustentáveis no modo como gerenciam seus recursos e sua infraestrutura, muitas vezes sobrecarregada, para atender as necessidades e expectativas, atuais e futuras, de sua população. Esta necessidade provocou o surgimento de novos conceitos, prescrições e políticas voltadas à transformação das cidades nas últimas décadas; dentre elas, a cidade inteligente.
Para responder aos rápidos desafios socioeconômicos enfrentados pelos espaços urbanos no período recente, uma das tipologias que mais se destaca é a de cidade inteligente. A tipologia de cidade inteligente, enquanto definição, é um arranjo que engloba os fatores de produção urbana num quadro comum, um modelo conceitual, que ressalta a importância das tecnologias de informação e comunicação, as TICs, no aprimoramento e potencialização da cidade contemporânea.
Com bilhões de pessoas conectadas por dispositivos móveis, possibilidade de acesso ao conhecimento sem precedentes e avanços em campos como inteligência artificial, robótica, internet das coisas (IoT), impressão 3D e computação quântica, a tecnologia e a inovação têm avançado de forma acelerada, remodelando economias, sociedades e a urbanização. A tecnologia está incutida na vida urbana com profusos dispositivos distribuídos entre a população e organizações, além de casas inteligentes, edifícios inteligentes e serviços inteligentes, mudando a maneira como os cidadãos vivem, trabalham, se divertem e interagem com a cidade.
Muitas cidades contemporâneas têm concentrado esforços para se tornarem inteligentes com o emprego de TICs na resolução de problemas, no aprimoramento e na revitalização de aspectos específicos em sua operação e gestão, como: economia, transporte, meio ambiente, saneamento e a prestação eletrônica de serviços públicos. Porém, a visão de cidade inteligente não envolve necessariamente o desenvolvimento de uma cidade perfeita, mas, muitas vezes, apenas o aperfeiçoamento e a resolução de problemas da cidade real com o apoio de tecnologia.
Em termos gerais, as cidades inteligentes “envolvem a criação de novas relações entre tecnologia e sociedade” (SODERSTROM; PAASCHE; KLAUSER, 2014, p. 309). A tecnologia considerada “inteligente”, e antes utilizada predominantemente no contexto pessoal e organizacional, estendeu-se, ao menos conceitualmente, para os espaços públicos e até mesmo à cidade como um todo. Assim, discussões sobre a cidade inteligente tornaram-se relevantes, tanto no contexto da urbanização, quanto no da informatização e da globalização.
No âmbito da governança urbana, por exemplo, a difusão de dispositivos móveis, redes sociais e plataformas digitais, tem facilitado a comunicação e a interação entre membros das comunidades, entre os cidadãos e a cidade e favorecido a participação pública, a cocriação de serviços e a contribuição da sociedade civil em processos colaborativos. Na economia, a tecnologia contribuiu para tornar o comércio e as transações financeiras cada vez mais digitalizadas, influenciando decisões de logística, habitação, mercado de trabalho, acesso à educação, transporte, instalações e cuidados de saúde.
A adoção de tecnologias da informação e comunicação impacta não apenas a maneira como as cidades automatizam suas funções e serviços, mas também a forma como podem ser compreendidas, monitoradas, analisadas e planejadas. Na cidade inteligente a infraestrutura tecnológica se funde à infraestrutura urbana tradicional de forma coordenada e combina inovação para aumentar a eficiência, promover a sustentabilidade e a qualidade de vida da população.
Para alguns autores, a “inteligência” da cidade se relaciona à disponibilidade, desenvolvimento e utilização das TICs, pois, para ter sucesso, ela e seus habitantes devem estar interconectados. Para outros, a “inteligência” está associada à capacidade da cidade de fornecer infraestruturas e serviços que melhoram a vida de seus cidadãos. Há ainda, aqueles para quem a “inteligência”, ou smartness, significa essencialmente uma gestão urbana mais eficiente.
As cidades inteligentes se tornaram um fenômeno ‘glocal’ ao apresentar iniciativas espalhadas globalmente, com semelhanças e características compartilhadas, mas se ajustando aos aspectos locais de cada uma, como o seu contexto geográfico e territorial, o seu meio cultural e as necessidades da comunidade. Por outro lado, tais como outros fenômenos, elas são desiguais em uma variedade de escalas e, não apenas entre si, mas também internamente, considerando que nem todos os seus espaços, bairros e ruas serão igualmente inteligentes.
Em relação à sua definição conceitual, na literatura científica e no mercado, é possível encontrar centenas de descrições diferentes para esta tipologia, revelando uma dificuldade de acordo entre seus diferentes operadores. Entretanto, apesar da discussão em curso nos últimos anos, elas representam um campo multidisciplinar constantemente moldado por avanços em tecnologia e em desenvolvimento urbano. O quadro abaixo apresenta algumas destas definições:
Com o significativo avanço tecnológico das últimas décadas e o imenso potencial em aberto neste âmbito, as concepções sobre o desenvolvimento urbano do futuro passaram a ser fortemente ligadas ao impacto que as TICs têm e terão na vida urbana. Elas se tornaram importantes impulsionadoras de iniciativas de cidades inteligentes e o elemento central de definições desta tipologia, ainda que combinadas a outros fatores ou áreas de aplicação, tais como pessoas, mercado e meio ambiente.
Aspectos sociais, ambientais, culturais, econômicos e políticos são destacados por diferentes autores em suas definições de cidade inteligente, mas o que aproxima todas elas, seu elemento comum, é a presença das TICs. Em alguns conceitos, estas tecnologias são explicitadas e, em outros, são consideradas implicitamente necessárias para atingir os objetivos e interconectar diferentes elementos. De uma forma ou de outra elas sempre estão presentes nas definições mais precisas.
Muitas cidades de todo o mundo estão aprimorando a qualidade e o desempenho dos serviços urbanos com tecnologia, digitalização, dados e inteligência. Esta tendência foi observada especialmente nas principais cidades da Europa, EUA e Ásia. As cidades inteligentes surgiram, inicialmente, no contexto de países desenvolvidos, mas sua disseminação alcançou todos os continentes nos últimos anos.
A tecnologia apresenta boas oportunidades para locais em desenvolvimento, onde a preocupação com desafios e restrições de recursos que podem ser apoiados por elas é ainda maior. Ao mesmo tempo, economias menos desenvolvidas enfrentam dificuldades maiores ao tentar cumprir metas ambiciosas de cidade inteligente, como restrições financeiras, falta de suprimentos de hardware e software de TICs nativos e capital humano qualificado.
Em muitas cidades contemporâneas as TICs desempenham um papel importante, mas é a forma como estas são aplicadas e seu propósito que realmente as tornam “inteligentes”. Apesar da alta complexidade, o alcance do ideal de cidade inteligente depende de sua capacidade de integrar e interoperar todos esses elementos heterogêneos, projetando, identificando e incorporando hardware e software que permitam sua agregação para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.
Ainda que sem uma definição plenamente acordada sobre o que realmente torna uma cidade de fato “inteligente”, fica claro que o conceito de cidade inteligente não se limita à aplicação de tecnologias as cidades. Lim, Edelenbos e Gianoli (2019) identificaram, em revisão sistemática de literatura, os principais fatores em definições de cidade inteligente. Conforme o quadro abaixo:
Os autores categorizam os fatores mais recorrentes na literatura científica em três grupos principais: componentes, desempenho e objetivos. Os primeiros são considerados os requisitos básicos para uma cidade inteligente; o segundo, envolve seus resultados e; os últimos, são as metas a serem alcançadas pela cidade inteligente.
Conforme o levantamento destes pesquisadores, o principal componente da cidade inteligente é a infraestrutura de TICs, enquanto seu desempenho está condicionado à inovação e, o objetivo principal, costuma ser, embora não somente ele, o crescimento econômico e a competitividade da cidade.
Em relação a este último ponto, a literatura evidencia que há associação entre o investimento em políticas de cidade inteligente, a melhoria no desempenho econômico e o crescimento do PIB urbano. Isso ocorre, pois grande parte das políticas de cidade inteligente adota uma abordagem que envolve a atração de organizações e profissionais criativos e, também, mudanças no ambiente urbano que possam aumentar a vitalidade, a qualidade de vida e as oportunidades sociais e econômicas.
Quando em equilíbrio com as necessidades e anseios das cidades e cidadãos, a competitividade e inovação, por meio da economia do conhecimento, facilitam o desenvolvimento da cidade inteligente, marcando-a territorialmente com distritos, regiões e clusters que produzem P&D sofisticado. As cidades inteligentes são, além de uma tipologia voltada à melhoria da qualidade de vida do cidadão, uma forma de aprimorar os ecossistemas de inovação e a produção de conhecimento.
Soluções inteligentes concentram-se na melhoria da qualidade dos serviços urbanos para os cidadãos e organizações, incluindo equidade social, acessibilidade espacial, sustentabilidade urbana e vitalidade socioeconômica. Envolvem investimento para possibilitar crescimento econômico, mas também maior qualidade de vida e a gestão inteligente dos recursos urbanos, sejam eles materiais ou imateriais.
Uma cidade não é realmente inteligente se considera apenas aspectos econômicos enquanto menospreza as condições sociais de seus cidadãos ou usuários finais. Uma cidade também não é inteligente apenas por oferecer rede sem fio ou acesso à tecnologia. Para Nam e Pardo (2011, p. 185), ainda que as discussões sobre inovação em cidades inteligentes evidenciem a primazia da inovação tecnológica, a “cidade inteligente pode ser considerada uma interação contextualizada entre inovação tecnológica, inovação gerencial e organizacional e inovação política”.
O conceito de cidade inteligente não trata de um produto, um serviço ou um processo, mas de um novo paradigma em que gestores podem estruturar as necessidades de diferentes setores sociais em relação à prestação de serviços públicos ou privados e gerar conhecimento, proporcionando ecossistemas de aprendizado e facilitando a inovação. A cidade inteligente não deve ser tratada como um status a ser alcançado, mas como um esforço realizado pela cidade para se tornar inteligente.
Neste trabalho de pesquisa, com base numa perspectiva holística, e centrada nos cidadãos, com apoio do referencial teórico utilizado, desenvolvemos e adotamos o seguinte conceito operacional para a tipologia de cidade inteligente:
A cidade inteligente é um ecossistema de inovação urbana impulsionado pelo uso de tecnologias da informação e comunicação, as TICs, coordenadas de forma equilibrada junto à infraestrutura tradicional da cidade para aumentar a eficiência de seu sistema, dos serviços e da gestão urbana e, consequentemente, oferecer melhor qualidade de vida aos cidadãos.
Em nossa visão, apesar de a cidade inteligente ter a tecnologia como um fator central, seu propósito é plenamente alcançado apenas por meio de uma estratégia pautada na colaboração entre diferentes partes interessadas e em uma governança participativa, sem perder de vista a articulação entre o desenvolvimento econômico, social, sustentável e urbano inovador.
*Esse texto foi adaptado de DEPINÉ, Ágatha; TEIXEIRA, Clarissa Stefani. Eficiência urbana em cidades inteligentes e sustentáveis: conceitos e fundamentos. São Paulo: Perse, 2021. O livro pode ser acessado na íntegra neste link.
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