Beleza Em Veneza

Sobre a beleza em cidades

A visão do urbanismo como criação estética

Em seu texto A plea for beauty: a manifesto for a new urbanism, o filósofo Roger Scruton se dedica a defender a importância da beleza no urbanismo.

Os espaços urbanos exercem um papel central na história da civilização, seja em seu aspecto econômico por meio da criação e comercialização de produtos, bens e serviços ou nos aspectos cultural, religioso, ambiental e diversos outros. Pessoas passaram a viver em assentamentos – que posteriormente se tornaram cidades – em função da possibilidade de se viver melhor coletivamente.

Juntos conquistavam maior segurança e ordem, o cultivo dos alimentos era mais produtivo e as atividades podiam ser melhor divididas e especializadas. Viver junto era uma possibilidade de maior bem-estar para todos.

Porém, as cidades contemporâneas estão em declínio, tornando-se espaços de mera funcionalidade, onde as pessoas podem trabalhar e subsistir, mas já não encontram bem-estar.

Scruton atribui parcialmente o declínio das cidades americanas à feiura de seus centros, gerando consequências à vitalidade social, cultural, econômica e política de toda a nação. O autor afirma que, embora diversos sejam os fatores a que se atribuem o declínio dos centros urbanos, dois deles se destacam: sua submissão aos negócios e a fuga dos moradores para o subúrbio. Enquanto donos de negócios escolhem o centro em função de sua movimentação e infraestrutura, moradores fogem, pois o centro torna-se mais feio, caro e perigoso. Com a evasão das pessoas os espaços nessa área começam a definhar.

Leia também sobre o ambiente das cidades criativas

Nada é mais importante para uma cidade que seu centro e, quando este entra em declínio, as consequências somadas tornam inviável a sua recuperação. Esse declínio é evidenciado com lotes abandonados ou vandalizados, aumento da criminalidade e a dificuldade de ir embora, pois os imóveis se tornam invendáveis.

Na visão de Scruton, a principal causa é o desgosto das pessoas com a feiura e a falta de identidade que passa a predominar nos centros. Diferentes fachadas de lojas, restaurantes, propagandas e outdoors tomam o espaço que antes era ocupado pelas características identitárias do local, como sua arquitetura. O espaço urbano se degenera quando é visto somente como um instrumento ou estrutura temporária, tornando-se uma terra de estranhos e afogando o senso de pertencimento dos cidadãos.

É possível compreender esta ideia ao analisar um centro que se tornou predominantemente um espaço de comércio e negócio. À noite, quando estes não estão em funcionamento, ele é esvaziado, pois as pessoas moram e buscam lazer em outras áreas da cidade. Por essa mesma razão tais espaços são construídos e reconstruídos sem grandes preocupações com a aparência ou estética, mas apenas com sua utilidade. É o oposto da estratégia de um indivíduo que busca ordenar e “embelezar” sua casa, seu espaço particular, de forma a torná-lo mais receptivo e confortável. O centro se torna um lugar onde as pessoas não querem passar seu tempo, fragmentando relações e desarticulando a cidadania.

Assim, constituir mais áreas empresariais, diminuir a regulamentação ou mesmo criar incentivos fiscais não são suficientes para recuperar o local. Scruton argumenta que a solução não está no mercado ou no planejamento urbano tradicional, mas na estética urbana.

A legislação urbana importa

O autor faz um contraponto entre cidades dos Estados Unidos e cidades antigas da Europa, como Paris, Roma e Praga. As pessoas escolhem estes destinos europeus para turismo porque querem desfrutar da beleza, cultura e entretenimento presentes nestas cidades. E, em comum, elas possuem belos centros urbanos onde seus cidadãos desejam morar, independentemente de sua classe ou ocupação. Seus centros oferecem oportunidades culturais e recreativas, além do uso misto dos espaços combinando: casas, apartamentos, escritórios, escolas, igrejas e teatros.

Estas cidades mantiveram sua identidade estética ao longo dos séculos em função de normas jurídicas que preservaram os valores estéticos e de residentes comprometidos com sua manutenção e zeladoria. Tais normas não buscam dizer como a cidade dever ser, mas apenas o que não pode ser feito durante o curso de seu crescimento. Limites são estabelecidos para que as novas construções ou reformas estejam de acordo com o que já existe na cidade, “encaixando-se” na forma pré-existente. As restrições estéticas dizem respeito às áreas externas com a finalidade de encaixar cada nova “peça” a seu entorno, preservando sua beleza, o que é suficiente para atrair as pessoas.

Outros aspectos são relevantes para a estética urbana, como a educação, os espaços públicos e o tráfego, mas é a presença de restrições como estas que pode garantir a urbanização bem-sucedida e, segundo Scruton, foi sua ausência a causa do declínio de cidades americanas enquanto as antigas cidades europeias mantém seu encanto.

A participação das pessoas é um aspecto chave

Iniciativas cidadãs coletivas como associações e organizações não governamentais tiveram sucesso em diversos locais do mundo na preservação estética do espaço urbano. Scruton cita como referência mor a Inglaterra, a qual possui ações de destaque na mobilização dos cidadãos em torno desse interesse comum desde 1870.

A mobilização, além de maior conscientização da população sobre os aspectos urbanos, influenciou políticas públicas e legislação nacional, estabelecendo restrições e possibilidades de negociação sobre propostas e planejamento.

Confira aqui sobre a legislação romana para participação cidadã

A estética nas cidades não é meramente uma questão de gosto, mas algo que está ligado à cultura e ao que há de mais nobre numa comunidade. Ela reflete um mundo de significado sobre aquele espaço e as pessoas que o ocupam, além de manter a ordem e o sentido de transcendência. A estética urbana é uma forma de exaltar esse mundo de significado e expressar os ideais e valores de um povo. Não se trata de preservar o tradicional por ser antigo, mas de preservar o passado pela a importância e a beleza que ele possui. A beleza é um bem espiritual e, como bem espiritual, faz parte do que somos.

A beleza importa.

Referências:

A plea for beauty: a manifesto for a new urbanism

Not for Sale

On Defending Beauty

Planning reforms: Must England’s Beauty Perish, Mr. Cameron?

*Esse texto foi originalmente publicado no Medium.

The following two tabs change content below.
É advogada urbanista, pesquisadora, mestre e doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina com estágio doutoral na Sapienza Università di Roma. Atua na intersecção entre cidades, inovação e sustentabilidade. agathadepine@gmail.com