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Inovação no Setor Público e o Marco Legal das Startups: desafios e oportunidades com o CPSI e o Sandbox Regulatório

Por que tantos governos ainda enfrentam dificuldades para responder com agilidade aos desafios contemporâneos, mesmo diante de tantas inovações disponíveis? Em um cenário de transformações tecnológicas aceleradas e exigências crescentes da sociedade, o poder público precisa ir além dos modelos tradicionais de contratação e regulamentação.

Neste contexto, o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº 182/2021) oferece dois instrumentos jurídicos promissores para renovar a forma como o Estado se relaciona com a inovação: o Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) e o sandbox regulatório. Ambos representam uma inflexão institucional em direção à à inovação aberta e à construção colaborativa de soluções públicas.

Este artigo analisa o potencial impacto dessas ferramentas, bem como os desafios que ainda precisam ser superados para que se tornem práticas recorrentes na administração pública brasileira.

 

Por que Inovar no Setor Público?

Inovar no setor público deixou de ser desejável e passou a ser urgente. Trata-se de, em última instância, de comando Constitucional, nos termos do artigo 218 e seguintes da Constituição da República de 1988. Diante de desafios complexos como a sobrecarga dos serviços essenciais, a crescente exigência da sociedade por soluções ágeis, a transformação tecnológica contínua, entre outros, a inovação tem cada vez mais se evidenciado como um imperativo para governos que desejam manter sua legitimidade e capacidade de entrega.

Nesse contexto, os modelos tradicionais de formulação e implementação de políticas públicas se frequentemente se mostram insuficientes para responder às demandas emergentes. Exatamente por isso a inovação aberta desponta como um recurso capaz de aproximar o Estado de redes colaborativas, ecossistemas de startups, universidades e centros de pesquisa, abrindo espaço para soluções criadas fora das estruturas convencionais da Administração Pública. A questão central é: em vez de montar uma estrutura robusta com recursos próprios para desenvolver suas próprias soluções, o administrador pode somar as expertises de outros atores às suas, possibilitando alcançar os resultados desejados de forma muito mais rápida e eficiente.

A adoção de mecanismos de inovação aberta pelo poder público implica a transição de uma lógica de produção interna e isolada para uma lógica de colaboração e co-criação com agentes externos. A pluralidade de atores e perspectivas que essa abordagem possibilita — notadamente startups, pesquisadores, usuários e organizações sociais — permite ao Estado acessar novas trajetórias tecnológicas e acelerar o desenvolvimento de soluções mais aderentes à realidade.

Foi justamente nesse ponto que o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº 182/2021) trouxe contribuições relevantes, somando-se a um esforço legislativo que vem pelo menos desde 2015, com a Emenda Constitucional n.º 85. Ao reconhecer a importância das startups como agentes de inovação, o legislador criou instrumentos jurídicos que favorecem a experimentação e a colaboração com o setor público. Dois instrumentos, em especial, merecem destaque: o Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) e o Sandbox Regulatório.

O CPSI, previsto no artigo 14 da referida lei, é uma modalidade especial de licitação que permite à Administração contratar pessoas físicas ou jurídicas para o desenvolvimento e teste de soluções inovadoras em ambiente real, com ou sem risco tecnológico. Seu objetivo não é a aquisição de um produto pronto, mas a experimentação da inovação como resposta a um problema público previamente identificado.

Ao prever a remuneração mesmo quando o teste não gera resultado satisfatório, o CPSI claramente admite a lógica da incerteza como parte legítima do processo contratual e abre espaço para soluções de alto potencial inovador que, em condições normais, não seriam contratadas por meio de licitação convencional.

Já o sandbox regulatório, previsto no art. 11 da LC 182/2021, estabelece um ambiente jurídico controlado e temporário no qual determinadas exigências normativas podem ser flexibilizadas para permitir que inovações sejam testadas sem comprometer a segurança jurídica. Esse instrumento tem o potencial de trazer benefício para todos os envolvidos: startups, órgãos reguladores e, em última medida, a própria sociedade.

Ambos os instrumentos (CPSI e sandbox regulatório) repercutem o princípio da inovação como função do Estado e representam uma inflexão institucional em direção a uma Administração mais responsiva e experimental. Ao adotá-los, especialmente o CPSI, o poder público estimula juridicamente a inovação aberta e se posiciona como agente ativo na promoção do desenvolvimento tecnológico, deixando de ser mero comprador de soluções prontas para se tornar cocriador e participante ativo de respostas públicas mais eficazes.

 

Desafios para a implementação prática de instrumentos do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador

Apesar do avanço normativo representado pelo Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, a efetiva adoção do CPSI e do Sandbox regulatório enfrenta desafios jurídicos e institucionais que ainda limitam sua disseminação no âmbito da administração pública.

O primeiro entrave de possível consideração é de natureza cultural e institucional. A Administração Pública brasileira ainda opera, majoritariamente, sob uma racionalidade voltada à previsibilidade e à aversão ao risco. Essa tendência pode colidir com os pressupostos da inovação, especialmente quando esta envolve experimentação em ambientes incertos e tecnologias emergentes. Com o legítimo objetivo de garantir lisura e integridade nas compras públicas, muitas vezes são aplicados princípios e regras de forma restritiva, tornando a gestão do risco sinônimo de evitação do risco, o que pode resultar em paralisia decisória e baixa propensão a inovar.

Além disso, a falta de capacitação técnica dos agentes públicos responsáveis pela formulação e condução dos processos de contratação ou de regulamentação experimental também pode se apresentar como um obstáculo relevante. Embora a legislação permita a contratação inovadora, poucos servidores públicos dominam os instrumentos disponíveis, sabem elaborar problemas públicos como objeto contratual ou compreendem os limites e possibilidades jurídicas do CPSI. A ausência de orientações claras e modelos replicáveis contribui para uma baixa utilização desses mecanismos, sobretudo nos municípios e em estruturas administrativas menos especializadas.

Há também barreiras relacionadas à segurança jurídica e à aversão ao risco. Ainda que o Marco Legal tenha criado um regime próprio para o CPSI, com previsão de critérios de julgamento distintos da lógica do menor preço e autorização expressa para a contratação de testes sem obrigação de resultado, pode persistir um receio de responsabilização futura, especialmente em contextos onde o resultado não se concretiza. Isso desincentiva a experimentação e reforça a escolha por soluções já conhecidas, mesmo que menos eficazes.

No caso do sandbox regulatório, os desafios podem se concentrar na dificuldade de coordenação interinstitucional e na falta de familiaridade com o modelo por parte dos entes da administração pública. Inobstante a LC 182/2021 tenha autorizado a criação de ambientes regulatórios experimentais, são poucos os municípios ou estados que efetivamente os instituíram. Isso decorre, em parte, do caráter disruptivo da ferramenta, que exige a suspensão temporária de dispositivos normativos para possibilitar testes em ambiente real.

Por fim, destaca-se a fragilidade dos ecossistemas locais de inovação como fator que pode limitar a adoção dessas ferramentas. A implementação do CPSI, por exemplo, pressupõe a existência de startups, ICTs e ambientes de teste capazes de responder aos desafios lançados pela Administração. Sem a ativação ou estruturação de um ecossistema colaborativo, as chamadas públicas correm o risco de não receber propostas qualificadas ou de não encontrar parceiros com capacidade técnica e institucional para executar os testes.

Nenhum desses obstáculos pode ser resolvido simplesmente com mudança legislativa. É necessário construir uma infraestrutura institucional para a inovação pública, o que envolve capacitação específica de servidores, produção de modelos e orientações operacionais, articulação com os órgãos de controle e ativação de redes de inovação aberta. Iniciativas como as desenvolvidas pelo VIA Estação Conhecimento — que atua no desenho de políticas, na condução metodológica de laboratórios vivos e na mediação entre atores públicos e privados — têm papel fundamental nesse processo. O sucesso da inovação no setor público dependerá, em última instância, da capacidade de combinar normas habilitadoras com arranjos institucionais inteligentes, sensíveis às especificidades locais e comprometidos com a geração de valor público.

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Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). Mestre em Direito (UFSC) e Bacharel em Direito (CESUSC). Integrante do Grupo de Pesquisa VIA Estação Conhecimento. Estuda e trabalha para que o Direito cada vez mais deixe de ser visto como um muro de proteção.