Rede De Esgoto

A dataficação do esgoto em cidades inteligentes

É possível compreender grande parte de uma população a partir da análise de seu esgoto. Com o investimento tecnológico, a dataficação das redes de esgoto tornou-se uma possibilidade para o desenvolvimento inteligente dos centros urbanos, especialmente diante aos desafios na saúde pública.

Uma fonte de dados da população

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, o mundo e a ciência voltaram-se à saúde pública. Neste cenário, diferentes pesquisas envolvendo o espaço urbano incluíram as redes subterrâneas de esgoto como material de análise [4]. A Espanha foi um dos primeiros países a iniciar um programa de coleta e monitoramento semanal de matéria fecal em estações de tratamento na região de Múrcia [3]. A avaliação das coletas evidenciaram a presença de material genético do SARS-CoV-2, expelido nas fezes de pacientes infectados.  Tal descoberta mostrou-se vantajosa, à medida que permite rastrear a carga viral de casos confirmados e sob subnotificação em escala comunitária, gerando uma estatística regional confiável e quase em tempo real. 

A partir de então, diversos estudos empregaram o método amostral do esgoto urbano como medida complementar de enfrentamento à pandemia. No Brasil, por exemplo, projetos de coleta de esgoto in loco já foram implementados em Niterói e Belo Horizonte [3]. Em paralelo, pesquisadores da UFSC detectaram a presença do vírus em amostras retroativas ao período dos primeiros diagnósticos oficiais no país [5], o que indica uma possível alteração na cronologia da pandemia no Brasil e amplia as frentes de pesquisa com o então método de amostragem. 

Contudo, não é de hoje que o esgoto revela-se como um vasto reservatório de informações sobre a saúde e o comportamento humano. Em 1854, durante o surto de cólera em Londres, o médico John Snow introduziu o mapeamento de vida microbiana na escala urbana a partir de amostragens de águas residuais, dando início à Epistemologia Moderna [7]. Foi então que estas redes invisíveis na superfície das metrópoles se difundiram como uma fonte de diagnóstico da população. Atualmente, o método também é adotado para análise de uso de drogas e medicamentos e de hábitos alimentares em diferentes regiões de uma comunidade.

 


O esgoto como uma infraestrutura inteligente

Por muito tempo, a amostragem de esgoto caracterizou-se como um processo árduo e delicado. Consequentemente, havia um levantamento relativamente pequeno de dados e, logo, uma interpretação modesta das informações [8]. Com os avanços tecnológicos e a criação de sensores e softwares inteligentes, a coleta pôde ser automatizada.  Esta inovação permitiu a rápida extração e organização de uma imensa variedade de dados, o que se define como Dataficação ou Big data [2].

A dataficação do esgoto amplia as possibilidades de descobertas e conhecimento da microbiologia e do comportamento humano, a partir do momento que gera uma quantidade de dados muito maior do que seria possível coletar há décadas atrás. Deste modo, quando agrupados e sistematizados, os dados exibem padrões e correlações até então desconhecidos.

Na atual era da informação, a dataficação do mundo foi ainda mais impulsionada pela disseminação das TICs e pela digitalização de dados [2]. O armazenamento de informações digitais promoveu o desenvolvimento de recursos sofisticados de linguagens de visualização em sistemas dinâmicos e interativos. Os dados tornaram-se, enfim, mais acessíveis e legíveis, dada a sua interface e a sua forma de representação.



A dataficação do esgoto amplia as possibilidades de descobertas e conhecimento da microbiologia e do comportamento humano, a partir do momento que gera uma quantidade de dados muito maior do que seria possível coletar há décadas atrás. 

 

 

Diante desse contexto, pesquisadores do laboratório MIT Senseable City Lab, em Cambridge, visaram combinar as soluções inteligentes com a coleta de dados descartados pelo vaso sanitário. Em 2015, lançaram o projeto Underworlds, que consiste em instalar uma malha de amostradores robotizados no sistema de esgoto de centros urbanos.

Cada amostrador, imerso em diferentes pontos da cidade, seria capaz de coletar dados diariamente e disponibilizá-los em tempo real por uma central de comunicação. Desta central, a amostra poderia ser codificada e organizada em sistemas de visualização de dados, acessíveis em qualquer ferramenta digital. Atualmente, o projeto está em fase de teste dos protótipos robóticos inteligentes, e os resultados de cada teste são armazenados em uma plataforma digital no site do projeto. 

De maneira geral, Underworlds apontou uma caminho para a Epidemiologia do Esgoto, que vêm amadurecendo nos últimos anos, principalmente, devido ao cenário pandêmico [1], [6], [8]. Hoje em dia, as amostragens estão mais tecnológicas, as localizações da coleta se ampliaram para além das estações de tratamento, e os dados coletados estão sendo digitalizados em mapas microbianos da cidade. Afinal, a ideia original do projeto Underworlds, em desenvolver um censo da saúde pública a partir da coleta e análise do “intestino urbano”, não está tão longe de se tornar uma realidade concreta.

 


Como serão as redes de esgoto nas cidades inteligentes?

Projetos tal qual Underworlds mostram-se como iniciativas possíveis para o enfrentamento de desafios contemporâneos e o desenvolvimento de cidades inteligentes. A ressignificação do esgoto como uma infraestrutura inteligente caracteriza-se como uma estratégia de inovação para a cidade e de relativo baixo custo, ao atribuir uma nova função a estas redes submersas já existentes: a de servidor da saúde pública. A dataficação do esgoto permitirá diagnosticar a cidade e suas regiões em tempo real, de acordo com as tendências atuais e futuras de doenças contagiosas e silenciosas, como a obesidade e diabetes, reduzindo custos do sistema médico [7] . 

O Big data da amostragem do esgoto é uma tendência que impactará as estratégias de políticas de saúde pública, o planejamento urbano, a ciência epidemiológica e a relação entre comunidade e governança [8]. Por exemplo, os governantes, em conjunto com equipes multidisciplinares, poderão planejar mais cuidadosamente as medidas de saúde e avaliá-las em um curto espaço de tempo. Já os residentes e visitantes poderão reconhecer os padrões comportamentais em diferentes áreas urbanas, acompanhar a evolução de doenças e supervisionar a efetividade das políticas implementadas.

Nesse ponto de vista, a dataficação do esgoto aponta para mudanças profundas e de longo prazo nas diversas dimensões das cidades futuras e inteligentes. Dentre todas as dimensões, o principal ponto de convergência seria o cidadão no ecossistema urbano, a partir do momento que a “inteligência”, nesse caso, indica o oferecimento de informações de acordo com a sofisticação tecnológica, contribuindo para a disseminação de conhecimento, participação cívica e, sobretudo, qualidade de vida.

Referências

[1] Agência Nacional de Águas – ANA. (2020). Nota técnica: Contribuição para a elaboração de planos de monitoramento da ocorrência do novo coronavírus no esgoto. Monitoramento Covid Esgotos. Disponível em:<https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/acontece-na-ana/monitoramento-covid-esgotos/boletins-monitoramento-covid-esgotos/nota-tecnica-no-012020.pdf>. Acesso em: 22 de abr. 2021. 

[2] Cukier, K.,  Mayer-Schönberger, V. (2013). The Rise of Big Data: How It’s Changing the Way We Think About the World. In: Foreign Affairs, Vol. 92, No. 3, pp. 28-40. 

[3] Domínguez, N. (2020). À caça de um novo foco de coronavírus nos esgotos. El País Brasil (online), mai., 2020. Pandemia de Coronavírus. Disponível em:<https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-05-07/a-caca-de-um-novo-foco-de-coronavirus-nos-esgotos.html>. Acesso em: 23 de abr. 2021 

[4] Gonzaga, K., Alves, W. (2020). A presença do Sars-cov-2 no esgoto: possibilidade de transmissão e monitoramento epidemiológico. In: Congresso Brasileiro Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia, Anais […]. CoBICET I, Evento online, ago. – set., 2020.

[5] Magenta, M. (2020). Coronavírus em esgoto de 4 países antes de surto na China aumenta mistério sobre origem do vírus. BBC News Brasil (online), jul. 2020. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53347211>. Acesso em: 20 de abr. 2021 

[6] Menezes, M. (2021). Covid-19: monitoramento do vírus em esgotos pode colaborar na prevenção. Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, mar., 2021. Notícias. Disponível em:<https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-monitoramento-do-virus-em-esgotos-pode-colaborar-na-prevencao>. Acesso em: 22 de abr. 2021.

[7] MIT Senseable City Laboratory (2019). The Underworlds Book. Massachusetts Institute of Technology, p.51.

[8] Zhang, S., Duarte, F., Ratti, C. (2019). A world of data: Underworlds and health challenges in the age of smart cities. In: Smart Cities in the Post-algorithmic Era (ed.). U.K.: Edward Elgar, pp. 201-215.

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Aline de Camargo Barros

Graduada em Arquitetura (SENAC - SP) e mestranda em Design (UDESC), investiga projetos inseridos no ambiente urbano, suas diretrizes e possibilidades diante das inovações tecnológicas da realidade contemporânea, buscando um viés centrado nas necessidades e demandas do cidadão e da comunidade.

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