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Por que a Transferência de Tecnologia no Brasil ainda é um Desafio? Uma Visão Jurídica

A ideia de que a inovação depende da colaboração entre universidade, empresa e governo é amplamente aceita tanto na literatura quanto nas políticas públicas. No modelo da Triple Helix, proposto por Etzkowitz e Leydesdorff (2000), essa interação é entendida como condição indispensável para sociedades baseadas no conhecimento, atribuindo à universidade o papel gerador do saber, à indústria o da aplicação produtiva e ao governo a articulação normativa e institucional.

No entanto, essa relação desejável entre universidades e empresas, especialmente no campo da transferência de tecnologia (TT), ainda está longe de se consolidar como prática sistemática no Brasil. Embora mais de 130 Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) públicas tenham feito pedidos de proteção da propriedade intelectual (PI) em 2023, apenas 61 delas celebraram contratos de transferência de tecnologia no mesmo período (Brasil, 2024), o que revela uma lacuna significativa entre proteção e aplicação.

Obstáculos que persistem

De acordo com a literatura, essa discrepância entre o que é desenvolvido nas universidades e o que é apropriado pelo mercado pode ser explicada pela existência de barreiras operacionais enfrentadas pelos escritórios públicos responsáveis pela gestão da PI, o que no Brasil corresponde aos Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs). As pesquisas de Shen (2017) e Siegel et al. (2004) apontam que muitos escritórios de TT carecem de habilidades de negociação, conhecimento técnico aplicado e visão estratégica. Essa realidade é agravada por uma rotatividade de pessoal e por políticas institucionais frágeis, como observado por Ravi e Janodia (2021) e El-Ferik e Al-Naser (2021).

Além disso, há evidência da existência de barreiras regulatórias complexas, como o entrave da propriedade intelectual compartilhada, a morosidade nos trâmites legais e a ausência de instrumentos padronizados para formalização de parcerias. Como destacam Villani, Rasmussen e Grimaldi (2016), mesmo instituições experientes não estão imunes às incertezas regulatórias que desestimulam a cooperação.

Esses fatores são agravados por um problema cultural: a falta de confiança entre os atores. Universidades e empresas operam sob lógicas distintas, uma voltada à produção de conhecimento e outra à geração de valor, o que pode gerar desconfiança, desalinhamento de expectativas e até oportunismo (Bruneel, D’Este & Salter, 2010; Edgar & Kharazmi, 2022).

Como o Direito pode contribuir?

Apesar do avanço normativo que o Brasil experimentou nos últimos anos em matéria de Ciência, Tecnologia e Inovação, em especial a Emenda Constitucional nº 85/2015 e a Lei nº 13.243/2016, que atualizou a Lei n.º 10.973/04, ainda persiste uma tensão interpretativa que compromete a segurança jurídica necessária para a consolidação de uma cultura de transferência de tecnologia.

Boa parte dessa tensão decorre da aplicação acrítica de princípios do direito administrativo clássico, notadamente os princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público, como observa Barbosa (2024). Embora historicamente tenham servido como balizas de proteção do patrimônio público, esses princípios, quando aplicados de forma rígida e descontextualizada, acabam inibindo ou retardando iniciativas de inovação aberta e parcerias com o setor privado.

A indisponibilidade do interesse público, por exemplo, tem sido equivocadamente interpretada como uma vedação genérica à celebração de contratos que envolvam compartilhamento de propriedade intelectual, repartição de receitas ou coparticipação nos riscos tecnológicos. Tal leitura contraria diretamente a lógica do artigo 218 da Constituição Federal, que após a EC 85/2015, passou a prever expressamente que o Estado deve estimular a articulação entre entes públicos e privados no desenvolvimento de soluções inovadoras. A Constituição determina que esse relacionamento seja não apenas possível, mas necessário, na busca pelo desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação. Ora, se a Constituição aponta a necessidade dessa relação, parece incoerente que o Público lide com o Privado como se estivesse em uma lógica de concessões, por exemplo. De modo diverso, a relação esperada é de mutualidade. 

Além disso, o princípio da supremacia do interesse público, longe de impedir a colaboração com o setor privado, deve ser reinterpretado como um comando de eficiência, efetividade e impacto social das ações do Estado, especialmente no campo da ciência e tecnologia. Quando uma universidade pública firma um contrato de transferência de tecnologia com uma empresa para transformar um ativo científico em um produto útil à sociedade, ela está justamente cumprindo sua missão institucional, e não se desviando dela.

Essa releitura constitucional e finalística dos princípios jurídicos clássicos parece ser um caminho necessário para dar sustentação aos atos administrativos que envolvem inovação. Falta, portanto, no Brasil, uma sistemática de governança jurídica que favoreça a inovação aberta, com normas internas claras, segurança para os gestores e uma atuação colaborativa dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle.

É urgente superar a cultura do risco e da sanção que paralisa a ação administrativa e acelerar o processo incipiente de substituição por uma cultura de legalidade propositiva, em que os atores jurídicos (procuradorias, assessorias jurídicas, tribunais de contas) atuem como facilitadores institucionais da inovação, construindo entendimentos que deem viabilidade aos comandos constitucionais de articulação público-privada.

Nesse sentido, o papel do jurídico é mais do que o de um intérprete da norma e obstaculizador, como não raramente acaba sendo identificado (nem sempre de forma injusta, lamentavelmente): é o de um construtor de soluções jurídicas compatíveis com a complexidade dos processos de inovação.

É evidente que os desafios da transferência de tecnologia no Brasil não se esgotam na dimensão jurídica. Barreiras operacionais, culturais e estruturais também precisam ser enfrentadas de forma articulada. No entanto, ajustar o jurídico é um passo necessário. Ele não resolverá todos os problemas, mas pode criar as condições de segurança institucional necessárias para que outras soluções sejam testadas, desenvolvidas e consolidadas. Uma governança jurídica mais moderna, alinhada aos princípios constitucionais afetos à inovação, oferece suporte para a ação dos gestores, dá previsibilidade às empresas parceiras e fortalece a atuação dos Núcleos de Inovação Tecnológica.

Nesse cenário, o Grupo VIA Estação Conhecimento tem se posicionado como um agente na construção de soluções jurídicas para os desafios da inovação. Com uma metodologia colaborativa, o VIA atua na articulação com órgãos de controle durante a condução de ações de inovação, promovendo segurança jurídica para os agentes públicos. Entre as soluções desenvolvidas estão o Sandbox Regulatório para ambientes de teste seguro e a Contratação Pública de Solução Inovadora (CPSI) acoplada ao Living Lab. O grupo acredita que inovar com segurança jurídica é possível, e trabalha diariamente para transformar esse desafio em realidade concreta.

 

REFERÊNCIAS

  • BARBOSA, Ronaldo David Viana. Instrumentos jurídicos para a inovação: entre a ressignificação da supremacia e indisponibilidade do interesse público e a necessidade do desenvolvimento de um regime jurídico-administrativo próprio à inovação na administração pública. 2024. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/256043/PDPC1751-T.pdf?sequence=-1&isAllowed=y. Acesso em: 12 maio 2025.
  • BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação. Política de propriedade intelectual das instituições científicas, tecnológicas e de inovação do Brasil: relatório FORMICT ano-base 2023. Brasília: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/propriedade-intelectual-e-transferencia-de-tecnologia/arquivos/relatorio-formict-2024_ano-base-2023.pdf/view. Acesso em: 12 mai. 2025.
  • BRUNEEL, Johan; D’ESTE, Pablo; SALTER, Ammon. Investigating the factors that diminish the barriers to university-industry collaboration. Research policy, Amsterdam, v. 39, p. 858-868, 2010. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.respol.2010.03.006.
  • EDGAR, Gerry; KHARAZMI, Omid Ali. Systems Evaluation of University-Industry Collaboration Efficiency in Iran: Current Situation and Proposed Policy Framework. Journal of the knowledge economy, New York, v. 14, p. 645-675, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.1007/s13132-021-00873-z.
  • EL-FERIK, Sami; AL-NASER, Mustafa. University Industry Collaboration: A Promising Trilateral Co-Innovation Approach. Ieee access, Piscataway, v. 9, p. 112761-112769, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.1177/0971721818821796.
  • ETZKOWITZ, H.; LEYDESDORFF, L. The dynamics of innovation: from National Systems and “Mode 2” to a Triple Helix of university–industry–government relations. Research Policy, v. 29, n. 2, p. 109-123, 2000.
  • RAVI, Ramya; JANODIA, Manthan D. Factors Affecting Technology Transfer and Commercialization of University Research in India: a Cross-sectional Study. Journal of the knowledge economy, New York, v. 13, p.787-803, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.1007/s13132-021-00747-4.
  • SHEN, Yung-Chi. Identifying the key barriers and their interrelationships impeding the university technology transfer in Taiwan: a multi-stakeholder perspective. Quality & quantity, Dordrecht, v. 51, p. 2865-2884, 2017. DOI: https://doi.org/10.1007/s11135-016-0450-y.
  • SIEGEL, D. S.; VEUGELERS, R.; WRIGHT, M. “Technology transfer offices and commercialization of university intellectual property: Performance and policy implications.” Oxford Review of Economic Policy, v. 20, n. 2, p. 640-660, 2004. DOI: https://doi.org/10.1093/oxrep/grm036.
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Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). Mestre em Direito (UFSC) e Bacharel em Direito (CESUSC). Integrante do Grupo de Pesquisa VIA Estação Conhecimento. Estuda e trabalha para que o Direito cada vez mais deixe de ser visto como um muro de proteção.